terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

" SETE PORTAS DA BAHIA " (SOB A ÉGIDE DE SÃO SALOMÃO)

   *******SETE PORTAS DA BAHIA*******            *** SOB A ÉGIDE DE SÃO SALOMÃO***
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   Entardecia. Era aquele instante em que o sol, despedindo-se, transforma o céu em outro, deixando nas retinas dos viventes o brilho do reinado. Iria embora o sol, breve cairia a noite, mas aquele era aos meus olhos o instante em que cor não tem nome, nasce e morre num mesmo impulso, como se o tempo mudando de pele revivesse a criação. Entardecia sim, e era o instante que mais me deixa em mim. É quando amarro firme o saveiro e tomo o caminho de casa. Entardecia, eu estava em Águas de Meninos, já fora da embarcação, quando me apareceu o amigo, o escritor famoso, com dois acompanhantes, um japonês e um americano. Gosto do escritor: não é exatamente um amigo do peito, mas sempre foi pessoa de merecimento, desses que não têm besteira no trato com os da terra, um amigo afinal. Foi se chegando, cumprimentando e apresentando: "Mestre, estes são conhecidos meus, pessoas recomendadas a quem mostro a Bahia". Conhecido não é o mesmo que amigo, mas enfim, muito que bem, perguntei o que posso fazer por vosmecê?  E ele: queria que o senhor mostrasse a capoeira. Rarrará, pois sim, com que então o jogo já tem todas essas valias! relutei, fis um pouco de doce, mas não sou de deixar ninguém na mão, terminei chamando o Manuelzinho da barraca "Deus Dara" e ali, na beira do cais sem cantiga, berimbau, sem nenhum som, mostramos a brincadeira pros homens. Brincadeira insisto: jogamos angolinha sem maldade, só pra dar uma ideia. Agradei? Talvez sim, mas então não precisava dar a chateação que deu. Assim sem mais nem menos o japonês entendeu que o jogo era só dança, que não tinha nada a ver com a luta e com um sorrisinho fingido, me desafiou. Depois a gente mesmo ainda canta que capoeira é bicho "farso"... Falso mesmo era o amarelo que me chamava sorrindo com ares de amizade, mas que se mexia o tempo todo como fera. É, sim, tenho essas coisas comigo,  de medir gente por padrão de bicho. Olho pros pés, vejo gato; pros olhos, onça; pros braços, aranha, mas também me dá de ver galinha, pinto, tudo quanto é bicho frouxo. O japonês era um tamanduá e eu o sabia por seu jeito de plantar os pés no chão, de arquear os braços escondendo a força, pra não espantar a vítima. Ainda por cima eu sabia, nunca fui bobo, que japonês é dado a artes perigosas, dessas que botam o vivente de cara na terra sem tempo de apelação. Aquele alí, o conhecido do amigo escritor resolveu ser honesto e foi avisando enquanto tirava o paletó e gravata que tinha sido campeão de judô. Eu não conhecia, e até hoje não conheço a mandinga desta arte, mas tinha certeza de que era coisa de tamanduá, coisa de abraços mortais, de sufocar coitado. É. Assim como são os homens,são também as criaturas, ou o contrário. Eu tinha pela frente um tamanduá. Não gostei. Afinal, eu trabalhara duro o dia todo, o resultado da pesca quese nada, fiz aquela demonstração para servir a um amigo e recebo na cara um desafio, alguém põe em dúvida a brincadeira. Não gostei não, mas também não receei. Pra não dizer não. O escritor ainda tentou se meter, dizer pro japonês que não era a coisa mais bem-educada a fazer, mas o americano insistiu entusiasmado, e o amarelo não arredou o pé. Queria ver o jogo à vera, e pronto. Não tive jeito: vamos lá, angolinha mais uma vez. Comecei manso gingando, acenando com a mão, fazendo as honras da casa, do corpo. É isso aí: o corpo é casa- do mistério. Pode haver quem ache que é coisa de dois e dois, que nele tudo sai certinho conforme o calculado. Mas eu tenho comigo que não é assim, que conta é outra, é de fora deste tempo ordinário, é de dentro do segredo. Falo de experiêcia, cabeça nenhuma é dona do corpo. Lembro  uma vez em que eu ia entrando no barco com uma pilha de pratos na mão, a cabeça longe dalí, cheia de minhoca e aporrinhação, quando, Bento, bem na minha frente, de remo atravessado no ombro, voltou-se sem dar aviso, e com tal rapidez, que a quina do pau ia achatar direitinho o meu pé d'ouvido. Com um pé na borda do saveiro e o outro no cais, verguei o corpo pra trás, os braços esticados para cima, sustentando os protos, que nem gaiato de circo equilibrado sobre o vazio da água. Disse verguei? Talvez seja melhor dizer que o corpo me jogou para traz, sem plano, sem treta, cálculo nenhum. É, o corpo vive às vezes sozinho com manhas próprias. E agora, eu sentia que o japonês era desses que julgam senhores do corpo, desses que amontoam saber e truques, dobram o físico com a ginástica e viram maquininha de bater. Isso eu via no olhar do homem, no rastreamento dos músculos, na confiança atrevida. Eu? Eu nem aí... Comecei remanchoso, sem afobação, dançando angolinha. Corpo gosta de dança, é preciso agradar o corpo. Ginguei mais, fui ao chão, levantei o braço, esperei. Na fome o amarelo avançou e me agarrou a mão. Tamanduá purinho. Primeiro meu braço ia virar um nó, desses que ninguém desata, depois eu seria engolido num arrocho. Isto é o que estava na cabeça do homem, é o que a cabeça dizia ao corpo para fazer. Bem treinado, o corpo faz tim-tim por tim-tim. Mas também é capaz de vingança, que corpo não gosta de ser escravo da intenção de cabeça. Se vinga sim, avisando aos outro a sabedoria da cabeça. Pois corpo vive de amor, seu segredo não passa por língua grossa. Quantas, quantas vezes, no entardecer, à beira-mar eu abria a camisa e deixava a brisa me tocar macia como mulher, e depois, bêbado de carinho, saltava para cima, cada vez mais alto até pegar na ramagem das árvores tão leve me ficava o corpo. Quantas, quantas vezes, no jogo da capoeira, o corpo não ficava em pleno ar, na emergência da queda bruta, mas terminava rolando manso, que nem pluma, no chão? Corpo gosta de capoeira, que é jogo amoroso, sim. Amor não é coisa fraca, muito menos boba. Meu corpo viu logo de saída como o tamanduá se movia o que ia fazer. Por isso, levantei o braço, qual isca para charéu, à espera do ponto xis. É coisa que nenhuma cabeça conhece, é do mistério do corpo, sem nome, sem conta, como as cores do entardecer. É um ponto que aparece no peito, no braço, na perna, em qualquer lugar, conforme o momento. O japonês não sabia, não podia saber do ponto xis, pois só tinha aprendido a ganhar, não era de contemplação. Mas o dele se mostrou bem claro no calcanhar. Ali não tinha equilíbrio, não tinha saber, não tinha nada. Desci na rasteira, com vontade, e puxei. Adeus, tamanduá. Não quero exagerar nem contar vantagem, mas o fato é que o distinto ficou mais leve do que nunca na vida, voou. Acredito que a brincadeira pudesse ter durado muito mais se, na queda, ele não tivesse batido com a cabeça na beirada dura do cais. Ai, cabeça! não gostei, não queria machucar ninguém, muito menos o conhecido de um amigo meu, gente fina. A queda foi feia, sim, mas também não era pra desmaiar, entrar em coma, esses chiliques de moça. Enfim, tudo acabou bem: o socorro chegou rápido, o amigo escritor não me pareceu aborrecido, pois contou pra mim, com risadinha de viés, que o jogo não havia durado nem um minuto. Ainda bem, pensei, pois as luzes já se acendiam ao longe, lá pras bandas de Itapajipe, e eu queria chegar cedo em casa pra comer aquele peixe que a companheira prepara com toda a graça dos céus, não fosse eu chamado Samuel Querido de Deus.                                                                        Crônica

      Por mestre Yrapuru arauto do clã dos Palmares; historiador da Capoeira e pesquisador de História e História Geral.

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