sábado, 23 de fevereiro de 2013

VIDA DE ESCRAVO (SOB A ÉGIDE DE SÃO SALOMÃO)

                               *** SETE PORTAS DA BAHIA ***

(...) O MEU AVÔ costumava à noite, depois da ceia, conversar para a mesa toda calada. Contava histórias de parentes e de amigos, dando dos fatos os mais pitorescos detalhes.
     - Isto se deu antes do cólera de 1948 ou depois do cólera de cinquenta e seis.
        Eram os sinistros marcos de suas preferências. O seu grande motivo era, porém a escravidão.
        Tio Leitão dava nos negros como em bestas de almanjarra. Tinha uma escravatura pequena: um negro só para mestre-de-açúcar, purgador, pé-de-moenda.

       - O major Ursulino de Goiana( PB ), fizera a casa de purgar no alto, para ver os negros subindo a ladeira com a caçamba de mel quente na cabeça. Tombavam cana com a corrente tinindo nos pés. Uma vez um negro dos Picos chegou na casa-grande do major, todo de bota e de gravata. Vinha conversar com o senhor de engenho. Subiu as escadas do sobrado oferecendo cigarros. Estava alí para prevenir das destruições que o gado do engenho fizera na cana dos Picos. Ele era o feitor de lá. O senhor pedira para levar este recado. O major calou-se afrontado. Mandou comprar  o negro no outro engenho. Mas o negro só tinha uma banda escrava. Pertencendo a duas pessoas numa partilha, um dos herdeiros libertara a sua parte. Então o major comprou a metade do escravo. E trouxe o atrevido para a sua bagaceira.  E mandou chicoteá-lo no carro, a cipó de couro cru, somente do lado que lhe pertencia.
         Esta história da banda-forra, o meu avô contava para mostrar a ruindade do velho Ursulino

Por mestre Yrapuru DZ Historiador da Capoeira; arauto do clã dos Palmares pesquisador de História, e História Geral.
         

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

OS AFRICANOS E A CAPOEIRA NO SÉCULO XIX

                    *** SETE PORTAS DA BAHIA***


         Manoel Querino (1864- 1923) era um indivíduo que viveu a sua juventude na segunda metade do século XIX, sendo o seu depoimento o de alguém que, se não participou, presenciou a cultura da capoeira desenvolvida por alguns grupos sociais. Em seu trabalho Costumes Africanos no Brasil,descreve um encontro entre grupos: 
              

           "O domingo de Ramos fora sempre o dia escolhido para as escaramuças dos capoeiras. O bairro mais forte fora o da Sé; o campo de luta era o Terreiro de Jesus. Esse bairro nunca fora atacado de surpresa, porque os seus dirigentes, sempre prevenidos, fecharam as embocaduras, por meio de combatentes, e um tulheiro de pedras e garrafas quebradas, em forma de trincheiras, guarnecia os principais pontos de ataque, como fossem: ladeira de São Francisco, São Miguel, e Portas do Carmo, na embocadura do Terreiro. Levava cada bairro uma bandeira nacional e ao avistarem-se davam vivas à sua parcialidade. Terminada a luta, o vencedor conduzia a bandeira do vencido."


           Manoel Querino registrou a capoeira a partir de confrontos espaciais entre o grupos representativos dos bairros da cidade de Salvador, algo como um grande espetáculo que se consagra nos conflitos de rua e projeta seus símbolos e rituais. O autor afirma que os capoeiras possuíam uma cultura corporal própria, que revelava sua identidade social; e apresentava dois tipos de capoeiras: os profissionais e os amadores. Estes não usavam sinais característicos, mas se exibiam nas contendas entre os grupos. Manoel Quirino faz menção à existência dos cantos e dos instrumentos musicais, e finaliza sua descrição sobre a capoeira baiana, afirmando que somente no Rio de Janeiro o praticante " constituía-se como um elemento perigoso.
       Manoel Quirino presenciou os capoeiras em Salvador, local em que nasceu, e no Rio de Janeiro, onde se tornou vereador.

 Por mestre Yrapuru DZ, Historiador da Capoeira; arauto do clã dos Palmares pesquisador de História, e História Geral.
      
                    

domingo, 17 de fevereiro de 2013

A CAPOEIRA DE ANTANHO *** SÉCULO XIX***

          OS CAPOEIRAS E AS ELEIÇÕES
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          Vários escritores abordaram a intromissão, a ingerência dos capoeiras nos pleitos eleitorais realizados no Rio de Janeiro. Adalberto Matos, num artigo veiculado pela revista Para Todos de oito de março de 1924, focaliz o que ocorreu no ano de 1824. A seguir, irei transcrever o relato documentado do aludido escritor: "Os acontecimentos desenrolados naquele ano chegaram até os nossos dias, trazidos pelas crônicas e pelo testemunho dos anciãos ainda existentes, Diziam eles que nunca se mentiu tanto como naquela luta.
         A Liberdade e a Lei serviram de capa aos mais baixos sentimentos, a fraude imperou, o assínio afungentou os cidadãos pacatos e honrados , ficando em campo unicamente a capoeiragem desenfreada que espancava, esfaqueava e navalhava sem piedade, para que o fósforo tivesse voz ativa nas urnas. Uma crônica de Moreira de Azevedo nos conta fielmente o que foi a vergonha de 1872: " ... em nome do patriotismo e das liberdades públicas comentaram-se fraudes, violências e assassínio; transformaram-se as igrejas em arena de lutadores e capoeiras; vozerias, gritos, empurrões, exclamações estrondosas, disputas veementes, manejos de cassete, faca e punhal, luta e sangue, todo Cristo presenciou em sua casa, no lar santo e bendito que os homens lhe consagram. A entrada no templo tornou-se um perigo. Em vez do homem buscar a igreja como asilo de paz, do sossego, de meditação e lenitivo, afastou-se dali por ser o teatro de contendas, ambições, traições do pugilato e da morte."
        O que se leu é a verdade histórica sem rodeios e sem fantasias. Os jornais da época podem ser tirados da poeira das bibliotecas para confirmar plenamente a palavra do historiador." Evocando, com nitidez, o que acontecia nas eleições pretéritas, o Barão de Campo Grande revela num soneto documentário, a turbulência, os tumultos, os confrontos, as fraudes, os roubos perpetrados no dia em que travavam disputas eleitorais no Rio de Janeiro.

   Por mestre Yrapuru DZ arauto do clã dos Palmares pesquisador de História, História Geral e da Capoeira na sua íntegra.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

" SETE PORTAS DA BAHIA " (SOB A ÉGIDE DE SÃO SALOMÃO)

   *******SETE PORTAS DA BAHIA*******            *** SOB A ÉGIDE DE SÃO SALOMÃO***
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   Entardecia. Era aquele instante em que o sol, despedindo-se, transforma o céu em outro, deixando nas retinas dos viventes o brilho do reinado. Iria embora o sol, breve cairia a noite, mas aquele era aos meus olhos o instante em que cor não tem nome, nasce e morre num mesmo impulso, como se o tempo mudando de pele revivesse a criação. Entardecia sim, e era o instante que mais me deixa em mim. É quando amarro firme o saveiro e tomo o caminho de casa. Entardecia, eu estava em Águas de Meninos, já fora da embarcação, quando me apareceu o amigo, o escritor famoso, com dois acompanhantes, um japonês e um americano. Gosto do escritor: não é exatamente um amigo do peito, mas sempre foi pessoa de merecimento, desses que não têm besteira no trato com os da terra, um amigo afinal. Foi se chegando, cumprimentando e apresentando: "Mestre, estes são conhecidos meus, pessoas recomendadas a quem mostro a Bahia". Conhecido não é o mesmo que amigo, mas enfim, muito que bem, perguntei o que posso fazer por vosmecê?  E ele: queria que o senhor mostrasse a capoeira. Rarrará, pois sim, com que então o jogo já tem todas essas valias! relutei, fis um pouco de doce, mas não sou de deixar ninguém na mão, terminei chamando o Manuelzinho da barraca "Deus Dara" e ali, na beira do cais sem cantiga, berimbau, sem nenhum som, mostramos a brincadeira pros homens. Brincadeira insisto: jogamos angolinha sem maldade, só pra dar uma ideia. Agradei? Talvez sim, mas então não precisava dar a chateação que deu. Assim sem mais nem menos o japonês entendeu que o jogo era só dança, que não tinha nada a ver com a luta e com um sorrisinho fingido, me desafiou. Depois a gente mesmo ainda canta que capoeira é bicho "farso"... Falso mesmo era o amarelo que me chamava sorrindo com ares de amizade, mas que se mexia o tempo todo como fera. É, sim, tenho essas coisas comigo,  de medir gente por padrão de bicho. Olho pros pés, vejo gato; pros olhos, onça; pros braços, aranha, mas também me dá de ver galinha, pinto, tudo quanto é bicho frouxo. O japonês era um tamanduá e eu o sabia por seu jeito de plantar os pés no chão, de arquear os braços escondendo a força, pra não espantar a vítima. Ainda por cima eu sabia, nunca fui bobo, que japonês é dado a artes perigosas, dessas que botam o vivente de cara na terra sem tempo de apelação. Aquele alí, o conhecido do amigo escritor resolveu ser honesto e foi avisando enquanto tirava o paletó e gravata que tinha sido campeão de judô. Eu não conhecia, e até hoje não conheço a mandinga desta arte, mas tinha certeza de que era coisa de tamanduá, coisa de abraços mortais, de sufocar coitado. É. Assim como são os homens,são também as criaturas, ou o contrário. Eu tinha pela frente um tamanduá. Não gostei. Afinal, eu trabalhara duro o dia todo, o resultado da pesca quese nada, fiz aquela demonstração para servir a um amigo e recebo na cara um desafio, alguém põe em dúvida a brincadeira. Não gostei não, mas também não receei. Pra não dizer não. O escritor ainda tentou se meter, dizer pro japonês que não era a coisa mais bem-educada a fazer, mas o americano insistiu entusiasmado, e o amarelo não arredou o pé. Queria ver o jogo à vera, e pronto. Não tive jeito: vamos lá, angolinha mais uma vez. Comecei manso gingando, acenando com a mão, fazendo as honras da casa, do corpo. É isso aí: o corpo é casa- do mistério. Pode haver quem ache que é coisa de dois e dois, que nele tudo sai certinho conforme o calculado. Mas eu tenho comigo que não é assim, que conta é outra, é de fora deste tempo ordinário, é de dentro do segredo. Falo de experiêcia, cabeça nenhuma é dona do corpo. Lembro  uma vez em que eu ia entrando no barco com uma pilha de pratos na mão, a cabeça longe dalí, cheia de minhoca e aporrinhação, quando, Bento, bem na minha frente, de remo atravessado no ombro, voltou-se sem dar aviso, e com tal rapidez, que a quina do pau ia achatar direitinho o meu pé d'ouvido. Com um pé na borda do saveiro e o outro no cais, verguei o corpo pra trás, os braços esticados para cima, sustentando os protos, que nem gaiato de circo equilibrado sobre o vazio da água. Disse verguei? Talvez seja melhor dizer que o corpo me jogou para traz, sem plano, sem treta, cálculo nenhum. É, o corpo vive às vezes sozinho com manhas próprias. E agora, eu sentia que o japonês era desses que julgam senhores do corpo, desses que amontoam saber e truques, dobram o físico com a ginástica e viram maquininha de bater. Isso eu via no olhar do homem, no rastreamento dos músculos, na confiança atrevida. Eu? Eu nem aí... Comecei remanchoso, sem afobação, dançando angolinha. Corpo gosta de dança, é preciso agradar o corpo. Ginguei mais, fui ao chão, levantei o braço, esperei. Na fome o amarelo avançou e me agarrou a mão. Tamanduá purinho. Primeiro meu braço ia virar um nó, desses que ninguém desata, depois eu seria engolido num arrocho. Isto é o que estava na cabeça do homem, é o que a cabeça dizia ao corpo para fazer. Bem treinado, o corpo faz tim-tim por tim-tim. Mas também é capaz de vingança, que corpo não gosta de ser escravo da intenção de cabeça. Se vinga sim, avisando aos outro a sabedoria da cabeça. Pois corpo vive de amor, seu segredo não passa por língua grossa. Quantas, quantas vezes, no entardecer, à beira-mar eu abria a camisa e deixava a brisa me tocar macia como mulher, e depois, bêbado de carinho, saltava para cima, cada vez mais alto até pegar na ramagem das árvores tão leve me ficava o corpo. Quantas, quantas vezes, no jogo da capoeira, o corpo não ficava em pleno ar, na emergência da queda bruta, mas terminava rolando manso, que nem pluma, no chão? Corpo gosta de capoeira, que é jogo amoroso, sim. Amor não é coisa fraca, muito menos boba. Meu corpo viu logo de saída como o tamanduá se movia o que ia fazer. Por isso, levantei o braço, qual isca para charéu, à espera do ponto xis. É coisa que nenhuma cabeça conhece, é do mistério do corpo, sem nome, sem conta, como as cores do entardecer. É um ponto que aparece no peito, no braço, na perna, em qualquer lugar, conforme o momento. O japonês não sabia, não podia saber do ponto xis, pois só tinha aprendido a ganhar, não era de contemplação. Mas o dele se mostrou bem claro no calcanhar. Ali não tinha equilíbrio, não tinha saber, não tinha nada. Desci na rasteira, com vontade, e puxei. Adeus, tamanduá. Não quero exagerar nem contar vantagem, mas o fato é que o distinto ficou mais leve do que nunca na vida, voou. Acredito que a brincadeira pudesse ter durado muito mais se, na queda, ele não tivesse batido com a cabeça na beirada dura do cais. Ai, cabeça! não gostei, não queria machucar ninguém, muito menos o conhecido de um amigo meu, gente fina. A queda foi feia, sim, mas também não era pra desmaiar, entrar em coma, esses chiliques de moça. Enfim, tudo acabou bem: o socorro chegou rápido, o amigo escritor não me pareceu aborrecido, pois contou pra mim, com risadinha de viés, que o jogo não havia durado nem um minuto. Ainda bem, pensei, pois as luzes já se acendiam ao longe, lá pras bandas de Itapajipe, e eu queria chegar cedo em casa pra comer aquele peixe que a companheira prepara com toda a graça dos céus, não fosse eu chamado Samuel Querido de Deus.                                                                        Crônica

      Por mestre Yrapuru arauto do clã dos Palmares; historiador da Capoeira e pesquisador de História e História Geral.